Postagens

Mostrando postagens com o rótulo Prosa

Sucesso

 O que é o sucesso senão o mágico remédio, prescrito pela suposição, para curar todas as nossas dores? A medalha na parede, o metal no anelar da mão esquerda, passos de criança sobre o piso ou até mesmo o chacoalhar do molho de chaves. Quando listamos assim parece que o sucesso tem cadência, uma ordem certa e predeterminada para acontecer.  Inquieto-me. O engessado sufoca. Se pudesse, usaria o martelo da incerteza para desfazer qualquer peripécia a intentar solidificar o futuro. Tudo, sob os pés da percepção, transforma-se quando trocamos de assento na mesa do banquete da vida. Pela feliz surpresa da mutabilidade de tudo, deparo-me  com o novo conforme o mundo passa pela janela do ônibus. No borrão das árvores que balancam com o vento eu me lembro dos versos de Pessoa. Meus dedos apenas mais lentos que a ideia, caçam letra a letra pelo teclado, como uma artesã que tece os anos em cada fio e ponto. Teço os segundos do trajeto, teço as ideias de um estranho em um outro temp...

8 de março

       Os dias passam velozes e me perco nas folhas do calendário. De repente já se foi o Carnaval e o novo ano já não é tão mais novo assim. Os jornais tentam nos roubar o pouco que nos resta para além da rotina e do cansaço: a esperança. Em dias tão absurdos, sentirmo-nos um pouco loucos parece ser o mais são. Por essa razão, não resisto a aparente loucura de me ater às coisas simples apesar do mundo. Eu, você e esse sentimento enorme de gratidão.      Vasculho diários, textos compartilhados nesse blog, posts antigos do Facebook e antologias na estante. Nada parece certo ou suficiente e talvez, seja para o melhor. Se não fosse a inadequação, provavelmente deixaria mais uma vez as palavras esvanecerem antes de tentar passá-las a um papel.       Eu e você, te olho nos olhos e você me encara tão profundo que dá pra ver a alma. Nenhum poema, verso ou citação jamais seria capaz de fazer justiça as conversas silenciosas de afeto que com...

A lição do pavão

Imagem
     Existe uma lição na vida que somente os pavões - com toda sua imponência - são capazes de ilustrar com maestria.       Há quem goste dos pavões e há quem os desgoste. "Lindos" ou "exagerados", "graciosos" ou "ridículos". Os pavões certamente dividem opiniões.      Contudo, o animal, se entende ou não (não é benéfico afirmar que sim nem que não, nesse caso incerto a dúvida é mais completa que a afirmação), não se importa com os elogios ou críticas que recebe.       Ele, movido por sua essência de vida, continua a caminhar da forma mais majestosa que é capaz. Consciente ou não, magnânimo ou ridículo, o pavão precisa continuar a existir e se mover, e a bruta realidade é que ninguém pode fazer isso por ele, senão ele mesmo. Ele é mais do que os adjetivos que os que o observam lhe atribuem. Ele é verbo e o verbo não pede licença e nem desculpas. Ele vem, toma e ocupa seu espaço, porque ele precisa e pode.   ...

Dócil garota e feroz mulher

Imagem
     Mesmo com o passar dos anos existe uma espécie de inquietação que ainda me persegue. Nos meus passos ora incertos, ora mais firmes do que a trajetória de uma flecha; no silêncio da pacificação e na propagação das palavras consumindo a isenção; em cada pensamento inseguro e nas certezas infladas:  transito na linha tênue entre a brandura de uma dócil garota e a ferocidade de uma forte mulher.      A vida me fez ora poça e ora enxurrada e ser ambos é talvez mais consumidor que ser nenhum. A placidez da lagoa faz ebulir no íntimo a necessidade de fluir impiedosamente e o alvoroço da torrente faz-me carecer o repouso da suspenção.      Seria mentira se dissesse que jamais  quis ser mulher forte e esquecer-me de minha face de menina, mas essa existência e as forças maiores não se importam com o que queremos, felizmente. No fim, ser somente mulher e unicamente forte é um maniqueísmo tão improdutivo quanto a ideia de bem e mal ab...

Roubem-me!

   Na vida já me roubaram muitas coisas. Tantas vezes tomaram minha alegria com ameaças que me tinham sob a mira. Diversos momentos raptaram minhas certezas com desagradáveis surpresas. Ah, foram inúmeros os golpes e assaltos que me fizeram, mas agora parece que todos os sequestradores do mundo já se foram para um lugar em que meus passos não conseguem me levar. Ladrões desse mundo, onde estão? Pois nenhum de vós há intentado roubar-me minha tristeza. Já me surrupiaram tantas vezes, por que não mais essa? Poderiam vendê-la a outrem pelo preço de um terço do que ela me custou, poderiam descartá-la na próxima esquina, não me importo apenas roubem-me desta dor incessante.    Noites de rolar no colchão tornaram-se precursoras de repuxos na face, os sonhos mais usurpadores hoje me preenchem de alegria. Ah, tira-me um centavo de minha dor e eu te amarei milhares de milhões. Em um canto ou esquina, despoje-me de mim mesmo e, removendo-me de minhas vestes, depenando minhas p...

Às vezes...

 Às vezes eu me esqueço que a vida é muito curta para nos desgastarmos com contentamentos em vez de corrermos atrás dos nossos sonhos grandes e difíceis. Às vezes eu me esqueço que os dias bons e os dias difíceis vem apenas para ir. Às vezes... às vezes eu me esqueço que cada momento é um presente e a vida por si só já é uma dádiva. Às vezes, só às vezes eu cruzo com a novidade e, por um instante, existe encanto, fascínio e magia. Às vezes, mais frequentemente do que eu gostaria de admitir, eu me pego comparando o contínuo com o esporádico, me flagro melancólica desejando o raro e desprezando sua posterior forma de cotidiano. Ah, insaciável às vezes... às vezes sempre, você vem como uma promessa suspensa no tempo. Você é um rótulo temporário para um hábito em consolidação. Querido às vezes, você sempre foi o único a me prender a si por tanto.

Um duro golpe da realidade

     Estivera calma desde que acordara. O som do vizinho saindo pela manhã para trabalhar a despertara e, se isso não o tivesse feito, o volume alto da caixa de som do carro que passou vendendo uvas o teria feito uma hora e meia depois. Considerava-se sortuda, sua casa ficava em uma rua sem saída, o que a poupava de passar noites em claro pelos sons da movimentação noturna que permeava as outras ruas.      Levantou-se, fez café, os olhos cansados, mas a mente desperta de alguma forma. Em sequência, sentou-se em sua poltrona e abstraiu-se por alguns minutos, permitindo-se sentir a forma que seu corpo pequeno se encaixava entre as almofadas, no assento e no encosto. Seus pés não tocavam o chão, nunca o fizeram e não seria agora que o fariam.      Quando era adolescente sua mãe chegara a suspeitar que tinha nanismo, um ideal tolo e estandardizado do mundo da beleza: uma pessoa não podia ser naturalmente pequena, pois isto era anormal. Uma dúvida...

Sorrateiro

     Antônio Sacras Santos andava atormentado pelo piso de sua propriedade. De lá pra cá, de cá para lá e vários tiques nervosos. Ele sofria daquilo contra o que nada pode a razão, o coração. Antônio estava em um casamento feliz com seu amor, Amália Fernanda Silveira - que recentemente tornara-se Amália Fernanda Silveira Santos. Contudo, nem só das coisas concretas ocupa-se a mente e essa era a sua fonte de tormento.       Antônio não era possessivo, dificilmente poderia ser categorizado como ciumento, mas quando se experimenta a paixão em tão grande intensidade não existem garantias. Diante da possibilidade de não ser o objeto de afeição de Amália,  Antônio estremecia de nervoso e, transtornado, tornava-se uma pessoa irreconhecível. Recusara todos os convites para programas restritos a cavalheiros com finalidade de jamais deixar seu grande amor privado de sua companhia. Em todos os bailes a trazia bem próximo de si, para externar seu matrimônio p...

Quarenta e quatro vezes

     Eu vi campos verdes onde o vento beijava a grama e acariciava as árvores. Eu vi as árvores apontadas para o céu fazendo sombra aos homens e abrigando ninhos e colmeias. Eu vi o céu ser pintado com o azul das praias e então escurecido com o azul dos céus de mil noites, repleto de porções de tinta branca e então infestado por milhões e milhões de vagalumes. Eu vi as abelhas irem e virem de flor em flor sempre voltando para suas colmeias e os passarinhos voarem para longe e voltarem para seus ninhos. Todas essas coisas belas me foram cruéis ao coração, todas me trouxeram a lembrança de você. Elas me roubaram um espaço no pulmão, fizeram com que eu gastasse as areias do tempo imaginando se um dia você voltaria como as abelhas e passarinhos. Elas me permitiram sonhar que com doçura igual a do vento você me acalentaria quando retornasse. Todas essas coisas me fizeram pensar como seria maravilhoso mais uma vez ver o mundo pelos seus olhos, mas você se foi.   ...

Aniversários dos amigos

O amor e o carinho tiveram de encontrar formas de se expressar à distância. Para os céticos na transmissão de afeto pela rede o isolamento tornou-se sinônimo de solidão, mas como todo otimista eu tenho que continuar a buscar caminhos para demonstrar calor à distância, abraçar com palavras e beijar sem contato.

Um guia de navegação para a vida

  De tudo o que me dói guardo recordações como um guia de navegação da vida. Hoje foi um dia cinza e ontem choveu bastante, mas a semana passada foi ensolarada e fresca e alegre como a primavera.  Alguns dias nos atropelam, e com eles aprendemos a atravessar na faixa de pedestres, olhar dos dois lados antes de cruzar uma avenida e a esperar até que seja a hora oportuna para nos arriscarmos no asfalto.  É por causa desses dias tempestuosos que sabemos, bem lá no fundo, que existem abismos dos quais não devemos nem nos aproximar e outros que não há maneira de evitar. Também é por causa deles que nos enxergamos despidos de pompa e cobertos de nossa própria natureza.  E como é difícil encarar-se quando o que se vê não é bonito nem ideal, mas talvez nessa árdua empreitada residam os significados de maturidade e franqueza.  É uma das grandes virtudes ver a si mesmo desnudo de tudo o que externamos e, com coragem, lidar com a crueza e a imperfeição, porque aqui dentro ...

Medo

 O medo tem a aparência de um terreno abandonado mal iluminado por um poste. O medo tem cheiro de ferrugem e urina seca. O medo tem gosto de secura e queima como brasa na garganta. O medo me faz sentir sem ar e como se meu corpo pudesse desmoronar a qualquer momento de tanto tremer. O medo me faz parecer um filhote acabado de nascer, abandonado e indefeso. O meu medo me faz um animal selvagem enjaulado que se esqueceu da selva. O meu medo... o meu medo me faz menos de mim e mais de si mesmo.  

A razão pela qual escrevo

Imagem
                                                                                                                                                               Picture by:  @rawpixel-com      Há alguns anos fui a uma exposição de fotografia. Eu nunca tinha ido à uma, confesso que de início não tinha muitas expectativas. Cheguei a pensar: quadros na parede, estáticos, ignorados, impotentes, nada demais. Porém, naquela tarde eu precisava matar o tempo e ficar tão quieta quanto os retratos pendurados, mesmo que por alguns minutos.      Havia um e outro quadro inte...

Uma conexão e vários ensinamentos

Imagem
Image by @stories   Setembro 2, 2020 O sinal tocou alguns segundos atrás e o tempo, como sempre, quis ser um empecilho aos raros momentos em que conseguimos compartilhar o mesmo ambiente. Você se esticava para apagar a lousa e eu permanecia sentada na minha carteira esperando. O intervalo de troca dos docentes sempre foi o nosso pequeno presente no tempo, os minutos que eu podia compartilhar minhas angústias e alegrias e gafes para depois ouvir sua risada e seus conselhos. Talvez, para nós duas a troca sempre foi muito fácil porque sempre estivemos abertas ao afeto que pode ser compartilhado entre uma mestra e uma aprendiz. O aprendizado que duas pessoas em diferentes fases da vida podem alimentar. Nosso laço sempre foi cheio de metáforas, gestos de carinho em forma de palavras e, foi esse tipo de doçura, em vez do chocolate que você distribui após a primeira atividade da turma, que marcou páginas do meu diário e tomou conta das minhas falas nos jantares de família. Talvez essa ten...

A mão esquerda que segura a escova

Imagem
Photo by Braydon Anderson on Unsplash     Existe alguma graça na estranheza de escovar os dentes utilizando a mão esquerda quando se é destra. Perceber o total fiasco que sou nas mais simples tarefas quando a memória motora ainda está em processo de fabricação põe-me a pensar se todas as simples tarefas são na verdade muito difíceis ou se há desazo intrínseco à minha natureza humana. Provavelmente um pouco dos dois. A repetição é verdadeiramente poderosa: com o passar dos dias a mão trêmula vai, gradativamente, adquirindo estabilidade e a inexperiência dá lugar à precisão. Agora, a simples ideia de machucar a gengiva durante a escovação parece-me distante e, independente da sorte, dentro de algum tempo a mão esquerda e a direita poderão guiar a escova com idêntica familiaridade. Que coisa linda e aterradora é ter certeza que o hábito transforma obstáculos em plataformas, de forma que nos esquecemos de como a vida era antes de os superarmos. Afirmo - com a maior clareza que um...

O verme, o veneno e a causa perdida

Imagem
Um verme invadiu a minha boca e esgueirou-se garganta abaixo. Passou queimando na laringe e consigo senti-lo deformando o coração como uma doença de chagas. Decepção, ai de mim atormentada por tantos demônios, tão diferente de todos os outros idealistas que acreditam no bom homem. Ai de mim que quisera moldar-me nessa forma de pensamento utópica e a realidade impiedosa decidiu impor-se. Ai de mim, a quem a vida não prometeu nada. Ai de mim, cansada antes mesmo de começar. Tantas paixões que em noite são fogo e pela manhã borralho. Irreais, tanto quanto as peças que minha imaginação já me pregou quanto aos planos e sonhos para essa vida e mais seis reencarnações. Sem mais depois, queimar e apagar e arder e esfriar. Inferno vivo é zanzar na linha que divide o som e o silêncio, a esperança e a conformação. Crer então não crer para acreditar novamente. É como estar doente e envenenar-se para matar o parasita, repetidamente. E contudo, morrer e viver e morrer novamente. A vida é uma batalha...

Os covardes sempre vencem

AVISO DE "GATILHO":  Esse conto, narrado desde a perspectiva de um garoto de doze anos, é uma crítica social às violências cotidianas sofridas por mulheres e presenciadas por crianças. Caso tema cause alguma moléstia, recomendo que não leia.     É passado da meia noite, sei disso porque escuto os passos cambaleantes de alguém subindo as escadas. Aqueles malditos degraus de madeira a produzirem seu terrível barulho, os quais apenas continuam a me lembrar da ânsia em meu estômago.    O nervosismo já havia me levado a correr, como o covarde que sou, da cama direto para meu esconderijo de sempre. Desde que meu pai começou seu ritual noturno de auto-multilação-de-fígado, minha mãe me faz esconder debaixo da mesa, esperando, assim, poupar-me do comportamento agressivo.    No entanto, apesar dessa tática ser fisicamente efetiva, é ineficaz em me proteger de feridas mais profundas, traumas marcados como aço em meu coração e mente.     Todas as n...

EaDAeDEdADaEAdE

O alarme toca cinco minutos antes da aula, da cama para a escrivaninha, não saio de lá antes das dez. No intervalo faço meu café e volto para mais duas horas de aula à distância. Se as pessoas antes achavam que a escola parecia uma prisão formadora de zumbis, agora elas tem certeza. É tanto tempo em frente à tela, são tantos os problemas de TI e distrações em ambientes não propícios a estudos que até mesmo os professores parecem drenados de vida. Educação à Distância. A educação Distante. Educação distante à. Distância à Educação. A distância Educacional entre o presencial e o virtual é imensa. EaDAeDEdADaEAdE

Monte Cristo

 A semana havia sido difícil e, quando chegou a última aula, a professora tivera um imprevisto e não poderia comparecer. Diante disso, fomos levados à biblioteca, confinados lá até que o sinal soasse, anunciando o final das aulas do dia.  Quando cheguei à biblioteca, o silêncio que parecia tão inerente ao ambiente estava maculado pelas rizadas esganiçadas dos outros adolescentes, pelo arrastar de cadeiras e pela música que vinha de algum celular. Todos os outros acumulavam-se na parte onde estavam localizadas as mesas redondas com cinco cadeiras cada. A princípio, escolhi uma das mesas vazias no fundo da sala, próxima às prateleiras de livros, mas o barulho me incomodava, não somente o externo, mas principalmente o que vinha de dentro, aquele revirar constante, o rugido dos pensamentos impiedosos. Eu sempre abominei o sentir da raiva, do desgosto, da decepção. Todos eles sempre foram amargos demais, indigestos e destrutivos. Mas eu não sabia, antes daquela época, daqueles dias...

Todos os meus professores passaram a usar agenda

Imagem
   Durante as semanas anteriores, ocorreu-me uma observação sobre um curioso fato: todos os meus professores agora usam agenda. Inicialmente pensei: "nossa que legal! usar agenda é ótimo, ajuda a planejar-se bem!', contudo, bastou uma análise mais cuidadosa da circunstância e o brilho se esvaiu.       Todos os meus professores passaram a usar agenda e não é porque eles se sentem mais confortáveis dessa forma, nem porque assim conseguirão ter mais tempo para relaxar ou curtir com a família. Todos os meus professores passaram a usar agenda para não esquecerem de nenhum afazer. Eles estão sobrecarregados: Há infinitas demandas dos alunos, das instituições, da sociedade com as quais eles devem lidar. Fora de seu papel tradicional agora eles se submetem a um processo de adequação às ferramentas tecnológicas para conseguirem manter a qualidade das aulas, sempre se questionando "será que os alunos conseguem me entender?". Imagino que agora tenham pesa...