Todos os meus professores passaram a usar agenda

   Durante as semanas anteriores, ocorreu-me uma observação sobre um curioso fato: todos os meus professores agora usam agenda. Inicialmente pensei: "nossa que legal! usar agenda é ótimo, ajuda a planejar-se bem!', contudo, bastou uma análise mais cuidadosa da circunstância e o brilho se esvaiu.  
   Todos os meus professores passaram a usar agenda e não é porque eles se sentem mais confortáveis dessa forma, nem porque assim conseguirão ter mais tempo para relaxar ou curtir com a família. Todos os meus professores passaram a usar agenda para não esquecerem de nenhum afazer. Eles estão sobrecarregados: Há infinitas demandas dos alunos, das instituições, da sociedade com as quais eles devem lidar. Fora de seu papel tradicional agora eles se submetem a um processo de adequação às ferramentas tecnológicas para conseguirem manter a qualidade das aulas, sempre se questionando "será que os alunos conseguem me entender?". Imagino que agora tenham pesadelos com a tela preta cheia de pequenas fotinhos ou com o silêncio no chat quando fazem alguma pergunta.
   Enquanto nós estudantes, no nosso lado da tela reclamamos da luz que irrita nossos olhos, da coluna dolorida e da falta de sol por causa do tempo dedicado a modalidade do ensino à distância, os professores lidam com três vezes mais tempo de exposição a todas essas provações. E mais: lidam com a preocupação com os outros trinta e poucos alunos em suas casas, se estes estão assistindo às aulas, como está seu aprendizado, sua sanidade mental, sua saúde física. É verdade que estamos todos passando por dias difíceis, mas às vezes precisamos olhar para além de nós mesmos e perceber que estender a mão é bem melhor do que tapar o rosto e encolher-se. Ser professor nunca foi tão demandante: o tempo parece líquido e escorre por suas mãos, o relógio está em uma corrida enquanto eles se desdobram planejando suas aulas, elaborando listas de exercícios, preparando as avaliações em uma tentativa de obter algum feedback.  
   Mas, apesar de tudo, eles prosseguem, cada dia mais cansados e preocupados. Me pergunto quantas horas eles dormem por dia - com certeza, menos do que deveriam. Qual será que foi a última vez que eles puderam ter um dia para "fazer nada", sem ter que responder nenhum e-mail, comparecer às reuniões online ou ter que encarar uma tela escura enquanto lecionam? 
   Paulo Freire disse que 'a educação é um ato de amor" e, desde a minha perspectiva, todo amor precisa de uma reciprocidade, uma resposta, ou, sem isso, é sufocado. No face a face, essa resposta era o brilho no olhar, a coragem de uma mão levantada em sinal de dúvida, um abraço sincero após o fim da aula, ou até mesmo uma piada espirituosa. A resposta ao amor da docência sempre foi o afeto, sendo assim, diante do espelho negro, qual será essa manifestação se todas as formas tradicionais foram interditadas?
   Essa é uma resposta que cabe somente a nós estudantes. Não podemos deixar que o amor seja sufocado, que o ensinar pareça mais um fardo do que uma paixão. Se existe aprendizado de verdade, esse é o do afeto, do companheirismo, do amor. Um amor vale a existência, que vale a vida.    
   Então, mesmo que isso signifique fazer alguns sacrifícios, se você estiver em condições, faça. Nem que seja para acordar quinze minutos mais cedo para poder ligar a câmera durante a aula, manifestar-se respondendo o professor pelo chat, enviar um e-mail no fim do dia agradecendo-o pela aula, fazer uma postagem nas redes sociais ou mandar uma mensagem instantânea na DM. Não importa sua forma de expressão, o que importa é demonstrar a reciprocidade, o afeto. 
   Estamos todos na trincheira e estarmos juntos importa mais do que a própria guerra. Dias melhores virão, resistamos juntos.  


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