Dócil garota e feroz mulher


    Mesmo com o passar dos anos existe uma espécie de inquietação que ainda me persegue. Nos meus passos ora incertos, ora mais firmes do que a trajetória de uma flecha; no silêncio da pacificação e na propagação das palavras consumindo a isenção; em cada pensamento inseguro e nas certezas infladas:  transito na linha tênue entre a brandura de uma dócil garota e a ferocidade de uma forte mulher. 

    A vida me fez ora poça e ora enxurrada e ser ambos é talvez mais consumidor que ser nenhum. A placidez da lagoa faz ebulir no íntimo a necessidade de fluir impiedosamente e o alvoroço da torrente faz-me carecer o repouso da suspenção. 

    Seria mentira se dissesse que jamais quis ser mulher forte e esquecer-me de minha face de menina, mas essa existência e as forças maiores não se importam com o que queremos, felizmente. No fim, ser somente mulher e unicamente forte é um maniqueísmo tão improdutivo quanto a ideia de bem e mal absolutos. Todas as questões do coração possuem mais nuances do que é capaz de reconhecer nossa falha consciência. Em verdade, buscar respostas simples para questões complexas é uma ocupação tola. 

    Então o tempo vem e o tempo passa, sem permissão. Sem controle, aceito a inquietação da dualidade: haverão dias que acordarei e, ao me levantar da cama, cada um dos meus passos sobre o piso serão indubitavelmente de uma mulher forte. Em outros, caminharei mansamente como caminham a maioria das garotas cheias de incertezas.

    Assim, faço tudo que me cabe: abraço a constante metamorfose de ser dócil garota  e feroz mulher. 


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Comentários

  1. Todos nós temos essa dualidade no cotidiano. Sou o que fui transformado no que sou.

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