Um duro golpe da realidade

    Estivera calma desde que acordara. O som do vizinho saindo pela manhã para trabalhar a despertara e, se isso não o tivesse feito, o volume alto da caixa de som do carro que passou vendendo uvas o teria feito uma hora e meia depois. Considerava-se sortuda, sua casa ficava em uma rua sem saída, o que a poupava de passar noites em claro pelos sons da movimentação noturna que permeava as outras ruas.

    Levantou-se, fez café, os olhos cansados, mas a mente desperta de alguma forma. Em sequência, sentou-se em sua poltrona e abstraiu-se por alguns minutos, permitindo-se sentir a forma que seu corpo pequeno se encaixava entre as almofadas, no assento e no encosto. Seus pés não tocavam o chão, nunca o fizeram e não seria agora que o fariam.

    Quando era adolescente sua mãe chegara a suspeitar que tinha nanismo, um ideal tolo e estandardizado do mundo da beleza: uma pessoa não podia ser naturalmente pequena, pois isto era anormal. Uma dúvida tão tola, mas na época se sentiu muito abalada, por mais feio que pareça admitir, não queria que as pessoas a olhassem com pena, como se o fato de possuir uma condição física incomum, fizesse sua existência lamentável e pesarosa. As pessoas faziam isso, mesmo que sem intenção de ofender, ela própria já o fizera para uma colega cadeirante quando era mais nova. Na época nem percebeu, mas depois de um tempo, sentiu-se profundamente arrependida.

    Cada volta do relógio parecia infinita, as horas permaneciam ali, intocadas a ditarem seu próprio ritmo. Logo após o almoço decidiu que encurtaria a espera, saiu calmamente trancou os portões e com um olhar demorado se despediu temporariamente de seu lar. Havia comprado aquela casa junto com sua avó assim que teve de mudar por causa da universidade, fora a primeira da família a ingressar em uma instituição de ensino superior, fato que a avó, bem como a mãe faziam questão de exaltar desde que receberam a notícia. Mas desde que sua companheira de residência adoecera, nunca mais colocou os pés na academia, largara tudo para trabalhar e cuidar da senhora.

    A avó não era alguém que se abatia facilmente, mas como nenhum ser humano é isento de fragilidades, ela experimentara o pior tipo de degradação, o Alzheimer. Sempre fora uma pessoa cheia de energia e firme em sua convicções, nunca vira a avó maldizer o dia ou se acovardar diante de alguma tarefa, desempenhara-as com garra e muito brio. Porém, com o tempo a doença reduzira-a a um estado apático de insensatez. Já não havia mais o brilho nos olhos, a ousadia nas ações e a coragem de se viver a vida sem medo. Nas primeiras semanas, quando descobrira a doença, saíra para todos os lados, visitara todos os ente queridos e se preparara da forma mais digna para enfrentar o que viria. O tempo passou e logo esta chama apagou, talvez porque a mulher oscilava entre lembrar-se e não lembrar-se com certa frequência, então quando tomava consciência sobre seu estado, a decepção e a angústia a consumiam. Se sentia esvair cada dia a mais e não havia nada que pudesse ser feito.

    A sensação de impotência a corroera de formas irreversíveis. Assim como fizera com Marie. A ex-estudante de medicina se decepcionara com tudo, principalmente com a admiração que nutria por aquela profissão. Antes de tudo, enxergava a carreira como a mais bela e importante de todas: a possibilidade de salvar vidas era o que a movia, todavia diante da devastação morte, não conseguiu sustentar seu propósito e esperança. Mesmo que o ingresso na universidade tivesse tomado tempo e esforço (entrara anos depois de terminar sua educação básica), desistiu.

    Após sair do curso, quando ainda estava no segundo semestre, conseguira um emprego temporário como atendente em uma loja de remédios naturais. Provida dos conhecimentos adquiridos em suas aulas de biologia e sua habilidade para lidar com as pessoas, logo se destacou e conquistou uma vaga permanente. E desde então trabalhara lá.

    Conforme continuava a andar pelas ruas, o som de seu coração compassando seus passos, os cheiros e as cores a despertavam, ao mesmo tempo que a afundavam na vastidão das lembranças. Aquelas ruas, os edifícios arcaicos que se erguiam projetando sombras pelas vias, os carros que passavam e a muvuca das multidões de pessoas atarefadas lhe encantavam. Quando chegou a capital, odiou tudo o que havia ali: gente demais, barulhos em excesso e a vastidão do território pertencente a uma só cidade. Odiava como morar nas grandes cidades poderia significar levar três horas para chegar ao trabalho, ou como, ao ter tudo disposto na palma das mãos significava não conhecer metade. Entretanto, os dias imersas naquele ambiente a fizera (re)significar seu olhar para as coisas: estar na multidão absorta significava um tipo de solitude agridoce, os sons indicavam o quanto de vida preenchia o ambiente como uma forma de reafirmação da existência e a ampla extensão lhe proporcionava a chance de desbravar algo novo sempre que quisesse.

    Ao chegar na porta daquele café tão familiar, o cheiro da canela rodopiando pelo ar atingiu suas narinas, misturado com o aroma dos grãos frescos a fez suspirar brevemente pelo bálsamo das fragrâncias. Não havia sensação melhor no mundo do que a de sentir intensamente. Adentrou o recinto e olhou para o relógio, ainda assim estava adiantada, mesmo tendo se demorado o máximo que pode ao andar pelas ruas.

    Fez o pedido a garçonete e assim que a moça se afastou, com um ar cansado, viu-se questionando o porquê, nos cafés que frequentava, raramente haviam homens trabalhando, mas nos restaurantes chiques que passava em frente se concentravam em peso. Se perguntou por que, nos mercados que frequentava, a maioria das caixas eram mulheres e os repositores e empacotadores eram homens; por que no açougue, mulheres eram a exceção; Por que havia essa linha clara e silenciosamente desenhada e que ninguém se incomodava em contestar. Foi desperta de suas indagações quando suas colegas do clube de leitura começaram a chegar: em sua maioria senhoras de classe média e vida pacata que não tinham muito o que fazer a não ser jogar conversa fora. Entrara no clube assim que sua avó falecera, graças a um convite de uma companheira de trabalho da mais velha. E, apesar de no princípio se sentir deslocada, passar tardes conversando com senhoras sobre aventuras e romances se tornou algo fácil e reconfortante.

    Assim que todas chegaram, a conversa já corria a solta a muito e se prolongou a mais do que deveria, mas enfim discutiram a leitura mensal. Ao fim da reunião, contou sete companheiras tentando bisbilhotar sua vida, atrás de possíveis migalhas de sofrimento que ela estivesse aberta a compartilhar. A garota desolada, era como ficara conhecida posteriormente a revelação do que lhe acontecera. Sem se estender muito, despediu-se de todas e seguiu seu rumo a seu destino diário: o cemitério.

    Ao chegar, ajoelhou-se diante da lápide e fez uma prece, quando se recompôs ergueu-se novamente e confessou para a avó tudo o que a tomava por dentro: a tristeza, a saudade e a falta de propósito. Não se enxergava no mundo, nem conseguia dizer se o queria. Estava a deriva apenas existindo, como se sua vida não fosse realmente uma vida: dias enfurnada em sua casa, frequentar um clube de senhoras e perambular por aí sem nenhum propósito a exauriram por dentro. Como se em um momento fosse dona de si mesma, e no outro, uma mera observadora. 

    Não queria voltar para sua cidade natal, não quando os pais a olhavam como uma boneca de porcelana prestes a se partir. Não aguentaria mais olhares de piedade. Nem os lampejos de decepção que rondavam os olhos do pai quando se lembrava do que ela havia abdicado: sua ascensão social. 

    Absorta em seus pensamentos, não percebera os passos que se aproximavam. O homem a havia seguido desde que saíra do café, sozinha, distraída e triste. A vítima perfeita para os horrores inimagináveis que circundavam sua mente. Se aproximou a passos lentos, não queria fazer alarde desnecessário, apesar de que, naquele lugar somente os mortos testemunhariam o que estava por vir. Quando chegou ao alcance da mulher, os dedos tremendo em antecipação, agarrou-a pelo braço e a imobilizou contra a lápide mais próxima que encontrou. O terror se apossou do corpo de Marie, que sentiu os joelhos falharem. Lutou com tudo que tinha, distribuindo socos, empurrões, chutes e mordidas por todos os lados desesperada e inutilmente. Sua força não era párea para a de seu agressor. Se viu sem saída, encurralada e fez uma oração silenciosa na esperança que milagrosamente alguém viesse a seu encontro, socorrê-la a tempo. Livrá-la da violação.

    O som de uma sirene foi ouvida e, em questão de momentos, uma oficial fardada entrou no corredor de lápides onde a atrocidade se desenvolvia. Guiada pelos gritos abafados da vítima, ao discernir o horror que se passava diante de seus olhos, agiu automaticamente ordenando que o homem se afastasse de Marie.

    O sujeito correu, mas já era tarde pois outra policial o encurralou na saída e o reteu. No momento em que o agressor saiu em disparada, Marie caiu em um pranto descontrolado, não sabia o que fazer com seu corpo. Tudo parecia lento e pesado, então caiu de joelhos sobre o chão sujo e agradeceu com tudo o que lhe restava por ser a exceção à regra. Por ser poupada dos horrores que sabe-se lá quantas mais mulheres seriam submetidas naquele mesmo dia.

    E de um momento para o outro, sem aviso, sem razões ou justificativas ela fora exposta aquele golpe duro da realidade, que não selecionava altura, cor ou classe. Repassou o dia em sua mente, desde o instante que saíra de casa até que chegasse ao momento presente. Então se aborreceu mais uma vez, pela sensação de impotência que a preencheu mil vezes maior do que quando perdera a avó, porque agora ela fora salva, mas outras não teriam a mesma sorte.

    Levantou-se e percebeu uma nova luz se apossando do lugar que antes habitava o vazio infinito, deixou-a brilhar até que iluminasse os cantos mais tristes, trazendo um novo propósito. Ergueu-se não só por ela mesma, mas pelas outras que passavam por situações como aquela e determinação preencheu cada parte de seu coração calejado. Já era hora de mudar as regras do jogo, e o primeiro passo era falar alto, até que outras vozes ecoassem junto da dela.

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