Sorrateiro

    Antônio Sacras Santos andava atormentado pelo piso de sua propriedade. De lá pra cá, de cá para lá e vários tiques nervosos. Ele sofria daquilo contra o que nada pode a razão, o coração. Antônio estava em um casamento feliz com seu amor, Amália Fernanda Silveira - que recentemente tornara-se Amália Fernanda Silveira Santos. Contudo, nem só das coisas concretas ocupa-se a mente e essa era a sua fonte de tormento. 

    Antônio não era possessivo, dificilmente poderia ser categorizado como ciumento, mas quando se experimenta a paixão em tão grande intensidade não existem garantias. Diante da possibilidade de não ser o objeto de afeição de Amália,  Antônio estremecia de nervoso e, transtornado, tornava-se uma pessoa irreconhecível. Recusara todos os convites para programas restritos a cavalheiros com finalidade de jamais deixar seu grande amor privado de sua companhia. Em todos os bailes a trazia bem próximo de si, para externar seu matrimônio para além das alianças que repousavam em seus dedos.  Porque ele sabia que o amor aconteceria sem que ele visse, escondido no barulho dos pensamentos de Amália aqueles acobertados pelo silêncio das madrugadas ou até mesmo na mudez das conversas cortadas pela balbúrdia do meio dia. Acima de tudo, Antônio sabia que o amor era sorrateiro e sua mulher era leal apenas ao próprio coração. Ela não ligava para as circunstâncias financeiras, status social ou qualquer coisa do tipo, era uma mulher de negócios a serviço unicamente de seu sentir. Embora esta tenha sido a razão inicial pela qual Antônio apaixonara-se, agora a franqueza de sua formosa esposa consigo mesma roubava-lhe as noites de sono, tomava-lhe o ar todas as vezes que a pegava olhando a algum cavalheiro. 

    Para Sacras Santos, não havia uma alma na qual poderia confiar, não em si mesmo para controlar-se, muito menos em Amália nas juras de jamais deixá-lo. Não entenda mal, caro leitor, Antônio Sacras Santos jamais considerou sua mulher alguém volúvel - para além das situações circunstanciais em que ela trocava o vestido vermelho pelo azul e então pelo verde apenas para voltar ao vermelho e enfim ouvir uma repreensão bem humorada de seu amado - ou não confiável, mas ela era livre e essa palavra era mel e veneno. Ele não duvidava das palavras de amor, nem dos afagos com calor de lar, mas ele sabia o suficiente para entender que todos os grandes amores começam com as pequenas coisas, eles vem das coisas mais simples em sua maioria. Amália podia muito bem encontrar seu próximo grande amor em uma ida à quitanda,  em um passeio de carroça, enquanto olhava pela varanda e ela era livre e franca o suficiente para virar a página, para escrever um novo capítulo no seu livro da vida com um novo grande amor, ou quem sabe até mesmo com um novo amor qualquer (afinal mesmo os pequenos amores suscitam loucuras). 

    Porém, Antônio era homem lúcido e não se entregaria à paranoia tão rápido. Ele sabia que caso continuasse a colocar-se entre Amália e sua autonomia, a perderia sem que um terceiro afeto estivesse envolvido. Por isso, quando ouviu o barulho a porta, ele, resoluto, deu uma ajeitada nos fios do cabelo castanho e dirigiu-se à porta com passos ansiosos. O doutor Figueiredo cumprimentou-o com uma risada e algumas batidinhas nas costas. Ele convidou-o a entrar e logo que acomodaram-se na sala de visitas, Antônio despejou suas inquietações. 

    - Doutor, sofro de um mal terrível o qual tem me trazido severa exaustão - disse o paciente e amigo. 

    - Que tipo de mal tão grave tem lhe abatido, meu fiel companheiro? - inquiriu o doutor.

    - Pensamentos de perda. Eles me perseguem, meu amigo, querem roubar-me Amália antes que outro o faça - respondeu Antônio com angústia. 

    - Ah, meu compadre, vejo que está descobrindo um dos sintomas da paixão. Depois do casamento, isso é um caso raríssimo, devo dizer. A maioria é acometido durante o cortejo, mas assim que se coloca diante do padre é liberto. O seu quadro me parece ser o reverso. 

    - Eu já a amava, doutor, mas a bendita mulher tocou minha alma com suas palavras ao recitar os votos. A partir de então, tive esse comichão seguido de ideias embaraçosas sobre envelhecer ao lado dela, ser seu confidente, seu homem como nenhum outro.

    - Parece sério - disse o médico desconcertado com a recente declaração de seu interlocutor.

    - É seríssimo, Figueiredo. Essa certeza me reúne mais seriedade do que todos os documentos financeiros ao longo dos anos ousaram invocar.

    - Eu vejo o sufoco. O que queres fazer sobre isso? - inquiriu com curiosidade.

    - Quero que me dê remédio para calar a cabeça. Ora, que diabos de ideia é essa de perder o sono para matutar cenários de coração partido. Isso pode custar-me minha saúde e certamente minha felicidade! - constatou com um toque de desespero.

    Figueiredo sabia que o amigo não tinha necessidade de medicamento, que era mais uma vez seu mal habito de pensar demais que o assolava, então, tomou uma decisão ousada: entregou a seu paciente um frasco contendo água com açúcar que ele sempre carregava consigo devido a hipoglicemia. 

    Antônio Sacras Santos encheu o amigo de agradecimentos do sofá até a porta da frente, finalmente daria um jeito em seu problema. Sua devaneios jamais lhe roubariam a esposa! 

    Assim, o tempo veio para passar e, com a ida de semanas, doutor Figueiredo receberia uma carta de seu amigo que o faria dar umas boas gargalhadas. A água com açúcar havia operado milagres! Pobre Sacras Santos, mal ele sabia que o único infortúnio que lhe acometera era o amarelo das flores de Drummond. 

    Prezado leitor, eu me pergunto: por que nos atemos as coisas? Pois fato é que Antônio Sacras Santos em toda sua imponência e sabedoria se apegava ao seu medo e somente certo remédio milagroso foi capaz de libertá-lo. 



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