Monte Cristo

 A semana havia sido difícil e, quando chegou a última aula, a professora tivera um imprevisto e não poderia comparecer. Diante disso, fomos levados à biblioteca, confinados lá até que o sinal soasse, anunciando o final das aulas do dia. 

Quando cheguei à biblioteca, o silêncio que parecia tão inerente ao ambiente estava maculado pelas rizadas esganiçadas dos outros adolescentes, pelo arrastar de cadeiras e pela música que vinha de algum celular. Todos os outros acumulavam-se na parte onde estavam localizadas as mesas redondas com cinco cadeiras cada. A princípio, escolhi uma das mesas vazias no fundo da sala, próxima às prateleiras de livros, mas o barulho me incomodava, não somente o externo, mas principalmente o que vinha de dentro, aquele revirar constante, o rugido dos pensamentos impiedosos.

Eu sempre abominei o sentir da raiva, do desgosto, da decepção. Todos eles sempre foram amargos demais, indigestos e destrutivos. Mas eu não sabia, antes daquela época, daqueles dias difíceis, escuros, qual era a sensação de tê-los forçados garganta à baixo. Não sabia como eles eram pesados no estômago, no coração. Não sabia como era ter a apatia como tampão para mantê-los dentro, devorando-me, indefesa, indiferente, uma casca oca atormentada.

Essa sensação rondava por baixo de minha pele, onde as pessoas não se davam o trabalho de observar. E fosse o barulho do lado de fora, ou o rugido constante dos meus pensamentos, mas houve um momento que ficou alto demais para suportar. Então andei entre as prateleiras de livros, chegando até o fim, onde elas formavam um beco com a parede. Sentei-me no chão, em meio aos livros esquecidos, visíveis e invisíveis aos olhos adolescentes de meus colegas, aos meus olhos. Talvez a culpa tenha sido da necessidade de calar o barulho ou simplesmente da tentativa de mascarar a estranheza que externava-se por meus olhos,  mas estendi o braço a um exemplar pequeno que estava em posição de fácil alcance.

Tomei-o nas mãos e não foi o título "O conde de Monte Cristo", nem o nome de Alexandre Dumas estampados na capa que tornaram aquele momento ordinário nada ordinário. Foram as palavras, tão simples, doces, poderosas, infinitas que me despertaram o peito. A história do amor e liberdade roubados, seguido da vingança fizeram que o peso no meu estômago sumisse, que o chumbo em meu coração se suavizasse em mais leve pluma. As palavras entravam, percorriam-me, atravessavam e... completavam-me. 

Percebi que o peso não era nada senão um vazio, um oco, um eco, ausência do que um dia existira naquele lugar. Então ler, fora como beber água depois de uma longa caminhada no sol escaldante. Percebi que estivera faminta, minha alma estivera faminta, de vida, cor, palavras, poesia. Conforme a flama retornava ao meu ser, preenchendo lentamente os abismos, desafiando o nanquim, as lágrimas -há tanto sufocadas- escorreram pelos meus olhos borrando a vista. No momento que dei-me conta, abracei o livro contra o tórax, como se assim ele pudesse difundir-se mais rapidamente em mim.

O sinal tocou, um barulho perturbadoramente alto, esperei pacientemente que os outros saíssem e me dirigi à bibliotecária da escola. Emprestei o livro e passei as semanas seguintes extraindo qualquer possível vitalidade que ele pudesse conceder-me. 

Agora, quando o peito aperta, o peso volta, fujo para Monte Cristo. Sempre que o dia parece inacabável, que existe mais chão do que sou capaz de caminhar, vou para Monte Cristo sem realmente deixar minha pequena cidade interiorana. Ao longo desses anos, Monte Cristo deixou de ser apenas Monte Cristo e passou a ser tantos outros lugares para os quais as palavras me transportam. No fim das contas, a leitura tem me salvado, curado lugares onde ninguém vê e preenchido vazios que eu nem mesmo sabia existirem.

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