Escolhemos 60

    Já pensei muito sobre como as horas deveriam ser compostas por 100 minutos e os minutos por 100 segundos. Herdei da infância a ideia de que 100 é o número da perfeição para encerrar o ciclo do que já se foi e, enfim, reiniciar. Uma hora - conceito de algo que, quando pensei sobre o assunto na primeira vez, me parecia tão grandioso e extenso - deveria ser também composta por um número grandioso e extenso de subpartições.

    Convicta, respondia no dever de casa que 1 hora tem 100 minutos e a professora, muito afetuosamente, riscava o 100 e escrevia 60 por cima à caneta, me corrigindo. Claro que naquela época, nada nem mesmo a pronúncia do meu próprio nome era tão elaborada ou familiar como hoje. Levei tempo a me habituar e a justificativa por trás nunca me foi satisfatória: o sistema sexagesimal foi herdado historicamente. Não havia uma grande justificativa matemática ou geométrica por trás da escolha pouco óbvia do sistema de marcação temporal.

    A escala aritmética me berrava que 100 era muito melhor que 60. A ideia de que mais é melhor, me seguia. O número mais à frente na escala aritmética me parecia tão mais certo. Antes de pensar no meu tendenciosismo aritmético como problemática e tentar desconstruí-lo com a própria matemática sofisticada da graduação, tive que abandonar a visão espacial dos dois números na régua e voltar a enxergá-los como apenas algarismos distintos. 60 é diferente de 100, óbvio. Se 60 é diferente de 100, e queremos 60, não há nenhum problema com 100. Aliás, quase nada podemos afirmar sobre 100. O fato é, escolhemos herdar 60. E por que escolhemos 60? Do jeito que vejo, o motivo é 100% irrelevante, mas 60 e 100 são algarismos essencialmente distintos entre si. São duas coisas completamente diferentes.

    Deitada no escuro à noite esses pensamentos me vêm de forma pouco gentil. Sob a luz da lua que invade o quarto, o silencio maquina dentro de mim uma espécie de dor sufocada. 100 é diferente de 60 e, para a medida de tempo, escolhemos herdar 60. Talvez eu seja como a minha ideia de 100, me colocando à frente em uma régua imaginária e tentando estar a serviço de um outro que não pode (ou não quer) recebê-lo. Não importam os argumentos e a lógica para argumentar qual o melhor algarismo - até porque existem muitos outros mais que esses dois. O que importa é que escolhemos 60. "Escolhemos", escolher é uma ideia tão engraçada, não acha?

    O lado bom de tudo isso, percebo enquanto escrevo, é que escolhemos 60 para a medida de tempo. Nessa oração composta por subordinação, o objeto indireto delimita o contexto da escolha. Que bom. Ainda existem outros infinitos contextos em que poderemos escolher 100, ou ainda outro algarismo.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Superação do individualismo imediatista

Aquilo que não me pertence

Educação Básica